sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Ainda é tarde, o sol venta imóvel sobre as plantas da sala. Imóveis as plantas, não se aguentam. Tarde e o sol vai baixar, erguer serras sobre a cidade de edifícios. Tarde não há lua, não é verão. Não há tempo para um banho de mar. O mar já vai longe, tarde. A tarde lança homens, danças, traz meninos e caminhões. Vão brincar, correr para oeste, permanecer.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Aviso de perda
Enzenberger

Perder os cabelos, o controle,
entendem o que eu digo, o tempo precioso,
numa batalha perdida perder
a altivez, o brilho, lamento,
não faz mal, perder por pontos,
não me interrompam, perder
sangue, o pai e a mãe,
perder uma vez mais, num piscar
de olhos, o coração perdido
em Heidelberg, perder o encanto
da novidade, são águas passadas,
os direitos políticos, ah bom!
a cabeça, Deus do céu, a cabeça,
caso seja indispensável,
o paraíso perdido, não estou nem aí,
o emprego, o Filho Pródigo,
o prestígio, bons ventos o levem,
perder um molar, duas guerras mundiais,
perder três quilos de excesso de peso,
perder, sempre só perder, inclusive
as ilusões há muito perdidas,
e daí, nenhuma palavra
sobre os esforços perdidos,
mas nenhuma mesmo, perder
a vista de vista, a inocência,
que pena, perder-se, perdido
em pensamentos, na multidão,
não me interrompam,
o juízo, o último centavo,
deixa pra lá, estou quase terminando,
a compostura, o senso do ridículo,
perder tudo de uma vez,
até mesmo, ai, o fio da meada,
a carteira de habilitação e a vontade.
Pés, papéis, olhos, boca, joelhos, cacos. Me disfarço num mosaico. Só sabe quem espia pelo buraquinho. Surpresa, me ofereço aos pedaços. Mutilada, em grossas postas, talvez entenda carne de que me faço. mas, em tempos modernos, não abro mão do anonimato. Depois de me ver na bandeja, escondo o nome, me perguntam o que faço, do que vivo, como sou, a quem devo explicações. Mas, se mostro o resto, arranco a pele. E vice-versa.
A urgência me caminha em círculos. Estou urgente. A urgência é ainda móvel mas já tem um tremor por dentro: vê-se pela caligrafia.
Eu te vi, perdi o prumo. "Ana, querida, não se atreva a fazer previsões." Não existe rumo, essa vida, esse delírio. Não existe certo, incerto, errado. "Invente o mundo, Ana." Não gostei do que vi. Fui embora. Pra isso serve esquecer. Eu te vi, perdi o esquecimento. "Achou que ia sair impune?" E se eu passar batido? Não é pra isso que serve essa vida, esse delírio. "Você tem de inventar um rumo, Ana, e fingir que é real."
Da série "Poemas que eu vou amar eternamente"


PSICOGRAFIA

Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo da palavra: não digo
(não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto

(Ana Cristina César)
Quando Ana me deu um anel, eu disse que não. Aí ela me ofereceu um pedaço de bolo e eu abaixei a cabeça. Então, foi a vez dos pratos quebrados. Depois dos pratos pra eu quebrar. A tranqueira era sempre um mas. Trancada na cama, deitada, crescendo e não era mais nada o que eu queria. Era sem-querer que eu não encontrava, os traços cresciam, os cacos caíam e eu não. A culpa não era de Ana. Era o tempo passar vazio, vaga lembrança de uma silhueta que não existe mais. Não ponho os pés no chão por que não tenho memória. Não tem nada a ver com Ana. Ela, alva, é que não haveria de trazer um navio para me embarcar. Eu perderia de vista toda a terra. Eu mergulharia, Ana me levaria, eu seria âncora.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

O rosto de Bruno ainda inunda meus olhos abertos. O sopro de Bruno me submerge. Meio dia, quase, é ele quem volta os olhos para a montanha que assiste desde cedo. Bruno jaz sob água de chumbo, translúcida, não importa. Vê o céu mas jaz a incontáveis palmos de qualquer passarinho. (Que diferença faz ver passarinhos de perto? O céu de perto ainda é o de longe, você verá quando andar de avião pela primeira vez.) Borboletas pesam sobre os cílios e bruno, seus olhos têm dentes, seu nome, foi o pai quem deu, contará soluços tenros até que a saliva pare de escorrer.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Novo canto pra prosa confusa. Quanto mais edito mais troco as letras e falta pontuação.
Parto. Não me cabe essa fatia. Dou a volta em torno da mesa. A torta é a mesma. Torta. Barulho em baixo da toalha lisa. Nada. As formigas fazem silêncio. Emergem xadrezas sob a torta. Sobre a toalha, debaixo da torta. Clara. Torta. Cruzo as pernas. Cadeira. Frases sempre mais curtas. Pés resignados. Meus. As formigas caminham e fazem silêncio e caminham sempre. Tortas caminham sob o forro da mesa. A fatia aguarda.


Sente-se, meus verbos serão todos tão imperativos quanto meus desejos. Voltarei quando você se sentar. Ainda, anda, senta. Não, volta, senta. É vazia a boca que te cospe. É manco o gesto que te interrompe. Senta e podemos até criar um livro de provérbios milenares. Ejacular a faca da sua mão. Tombar sobre a pedra crânios vermelhos. Senta, vamos tentar. O tempo está bom, senta. Guardarei a sobremesa permanecerei quieta, aqui, neste mesmo lugar. Você agüenta esse pulso, a pele espessa, os tendões. Você senta e eu te compro uma revista, um bombom, haverá uma brisa. Faço companhia até alguém voltar. Discutiremos cidades, concreto, áreas de lazer. Concordaremos. Farei café e o tempo vai passar. Estaremos despertos, de pé, sobre a pedra fundamental. Afundaremos juntos, porque cabe a nós e a mais ninguém. Assistir programas na televisão, dormir tarde, ter cachorros, filhos, paredes, cds. Não sucumbir ao sorriso do céu cinzento deixar que uma nuvem apenas espanque nossos corpos sobre o asfalto, despenque molhada, gasosa e, gentil como carne de mãe, não provoque nenhum espanto. No tempo, as roupas irão secar.
Tenho um retrato surdo do tempo, um retalho de carne. Um vão cardíaco, um último corte. O que tenho vai longe, é fio de voz em canção de ninar. São braços cheios que ninam meu resto, um sono que embala meu corpo ereto. Tenho um talho do tempo em minha mão. De braços vazios não sei ninar.
Perdida em seu ventre, a Clara morreu pelo avesso. Seu útero espalhou-se pelo asfalto quente, calor, ela se lembra. Não se esquece, Clara despedaçada sobre a cama. Desfalece entre guardados, filhos, lençóis. Mas isso não é esquecer. Argumenta. Sua boca larga tinha força pra dizer. Onde escondeu-se a fragilidade de Clara. Se o ventre, terra preta e enxada, se o pequeno porte fechou-se em ferida. Se a vida agora estava debruçada sobre seu corpo cheia de cuidados, para que não doa. Sopra. Sem tocar a pele para que não se abra. Sem olhar os ossos para que não se quebrem. Sem que se façam perguntas. Converse em silêncio para que Clara responda, dentro da sala, o corpo que alguém ousa dizer frágil. Não. Sutil tavez, a conversa os ossos os olhos que vão longe. Não toque Clara, avisa a placa, o pequeno pássaro corajoso que não exita em falar alto, padece com coragem e aguarda o sopro para expirar a última fumaça violeta de dentro da sala escura de seus pulmões, por enquanto, repousa sobre a palma de cada uma de suas mãos.